Imperfeições na aplicação da Carta Magna e as desigualdades estruturais de um país ainda em busca de si mesmo.
Por Mauro Leslie

Nas veias abertas do Brasil, os rios correntes de águas, depositários dos diamantes nacionais, são explorados por garimpeiros do Brasil profundo. Lá, nas plácidas margens onde o Cruzeiro do Sul resplandece em suas águas, garimpeiros de costas ensolaradas peneiram e bateiam com devoção ancestral. Quando, na cata, encontram um diamante com falhas, manchas e imperfeições em sua estrutura física, os catadores, espiolhando, chamam-no de jaça. “O diamante tem jaças”, dizem. Segundo o Dicionário Oxford, jaça significa imperfeição (mancha ou falha) na estrutura física de uma pedra preciosa. Em sentido figurado, a palavra representa desonra, mácula, descrédito, desprestígio ou “des/reputação”. Ainda que não reconhecida lexicalmente em muitos compêndios oficiais, é largamente utilizada na prática — e talvez por isso, mais verdadeira do que muitas palavras que constam nos dicionários.
Jaças na aplicação da Constituição Brasileira
A democracia pouco — ou nada — existe nas favelas, para os sem-teto e os sem-voz. Infelizmente, ela passa por filtros tortuosos, contaminados por interesses enviesados. A democracia, no Brasil, é geográfica. Sua regionalização funciona por meio de separativíssimos, onde o status e o poder aquisitivo das pessoas fazem a triagem dos direitos.
Os direitos e deveres dos moradores de favelas controladas pelo tráfico (verdadeiros estados paralelos), os direitos dos invisíveis habitantes dos ermos escuros — seja nas periferias ou nos centros pobres encrustados nos centros ricos — não são os mesmos assegurados pela Constituição de 1988. O Estado não chega; os direitos existem, mas fraturados. E falham.
Quanto mais marginalizadas as regiões — como os estados do Norte, as cidades extremas do Oeste e as funduras do Centro-Oeste — menos democracia se observa. Menos Constituição. Existem muitas cidades dentro das cidades, muitos estados dentro do Estado, com seus direitos inaudíveis. São cidadãos menos cidadãos do que os outros.
Em 1989, a banda Biquini Cavadão cantava:
“Quem foi que disse que existe ordem e progresso?
Eu não sou ministro!
Eu não sou magnata!
Eu sou do povo,
Eu sou um Zé Ninguém.
Aqui embaixo as leis são diferentes.”
Essa realidade pode não ser a sua, mas certamente é a de muitos homens, mulheres e crianças invisíveis à luz dos seus direitos constitucionais. Os apanágios protetivos do Estado nem sempre alcançam as periferias — tampouco os centros onde vivem os marginalizados. A democracia brasileira precisa ser urgentemente georreferenciada.
Brasil: um Estado Predador
Em matéria publicada pelo Nord Research, em 18 de janeiro de 2025, relatou-se que, dois dias antes, havia sido sancionada a Lei Complementar nº 214, a primeira regulamentação da reforma tributária no Brasil. Com isso, o país passou a deter o título de maior alíquota tributária do mundo, ultrapassando a Hungria e assumindo o primeiro lugar no pódio da carga fiscal.
Como um Estado Democrático de Direito — responsável por fazer valer a igualdade — pode, ele próprio, praticar a extrema desigualdade? No Brasil, os ricos são ricos de fato. Os pobres, pobres de fato. Culturalmente, trazemos em nosso DNA a marca do senhorio e da servidão, da exploração e do explorado.
Parte da população é reconhecida como cidadã — ou seja, pessoa. Outra parte, como coisa. E coisas não possuem direitos como as pessoas.
A igualdade precisa se tornar mais importante para os políticos do que a reeleição ou suas carreiras de sucessivos mandatos. A Constituição é belíssima em sua teoria, basta ler o Artigo 5º. No entanto, no palco cênico da vida real, precisa se tornar bela também em sua prática.
Os quadrantes geográficos do Brasil têm donos. Cada nicho possui seu monopólio — o monopólio da degradação da democracia. A jaça no diamante que deveria ser puro, translúcido e homogêneo.
Nenhuma profissão deveria valer duzentas vezes mais que outra. Um gari não pode ser considerado menos importante que um CEO ou senador. Se o Senado parasse de funcionar, o país talvez continuasse. Mas se os garis deixassem de trabalhar, entraríamos em colapso.
Podemos até saber o que é igualdade — mas não a praticamos.
No Brasil, deveríamos instituir um sistema de fair play salarial. A sociedade é simbiótica, mas o sistema é anbiótico — ou seja, uma associação entre organismos em que um prejudica o outro. O oposto da simbiose. O contrário da harmonia.
Cabe lembrar que as jaças são muito maiores na aplicação da Constituição do que no seu conteúdo. A Carta Magna de 1988 foi o melhor que conseguimos produzir até então. E, de fato, avançamos. Ela possui, proporcionalmente, menos falhas no seu propósito do que na sua execução. A Constituição é imparcial. Já o Estado — e os homens que o governam —, muitas vezes, não o são.
A Alma da Constituição é a Educação da Alma
No dia 25 de março de 2025, o Brasil comemorou 201 anos da publicação da sua primeira Constituição, a de 1824, outorgada por D. Pedro I. Desde então, buscamos a identidade que fundamenta o Estado de Direito. O desafio contemporâneo é detectar as jaças, as máculas e as imperfeições que impedem a pureza da igualdade uníssona.
Bastaria que as pessoas agissem com ética perante as leis nacionais — em público, no privado e, principalmente, perante si mesmas.
A Constituição brasileira deveria ser ensinada desde o ensino fundamental até o ensino médio, como matéria obrigatória. Quem sabe assim, as gerações futuras — conscientes das falhas e das imperfeições (as jaças) na sua execução — desenvolvam uma consciência superior à geração que permitiu que os diamantes da Constituição se tornassem opacos.
Vamos apostar nas gerações vindouras. Na educação. Se não pela cultura, ao menos pela formação de hábitos virtuosos que substituam os vícios culturais de um sistema desigual.
A mudança precisa ser cultural. E só se muda um povo, culturalmente, começando pela semente — pela base. É por isso que a Sociedade Brasileira de Eubiose proclama:
“A esperança da colheita reside na semente.”
A sociedade humana deveria imitar a simbiose benéfica da natureza: seres diferentes que se nutrem mutuamente, em harmonia. Está tudo na natureza. Basta aprender a lição com o livro vivo da vida: a natureza naturante, termo cunhado pelo filósofo holandês Baruch Spinoza. Para ele, a natureza é Deus.
Aprendamos, portanto, com a política da natureza, com sua economia e sua ética silenciosa.
“A alma da educação está na educação da alma.”
— Henrique José de Souza